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Foto do escritorJuara Castro da Conceição

Não existe abolição sem reparação

O imaginário e a memória brasileira acerca da escravidão explicam a lacuna social que vem se perpetuando ao longo da história, no que diz respeito a compreensão simplista da escravidão como apenas uma passagem histórica do Brasil. Podemos observar que até hoje se exaltam datas como o 13 de maio de 1888 - dia em que a princesa Isabel assinou a “Lei Áurea”, mas se negligencia o fato do Brasil ser o último país a ter abolido a escravidão, por exemplo. Ao contrário do que se pensa, a princesa Isabel não era uma abolicionista que se valeu da ausência de Dom Pedro II para “libertar” os escravos. O que houve foi uma pressão social motivada por coletividades populares da época, visto que, pessoas negras nunca foram passivas à escravidão.


Forjar no imaginário brasileiro a ideia de que a escravidão não foi violenta e desumana é um projeto das elites brancas do nosso país, que vem sendo fortalecido ao longo dos anos por setores sociais e econômicos. Políticas de memória são necessárias para que tenhamos conhecimento do que de fato aconteceu em todos os anos em que a escravidão era legal (prevista em leis) e apoiada pelo Estado no Brasil. Não temos, por exemplo, museus, livros didáticos amplamente distribuídos e nem holofotes que reforcem como a escravização de pessoas negras é uma ferida aberta em nossa história social e que explica diversas desigualdades e sub-representações de pessoas pretas em nosso cenário sócio político.


“A felicidade do branco é plena, a felicidade do preto é quase” - assim cantam Emicida e Larissa Luz em “Ismália”. Essa música traduz um pouco do que a Lei Áurea representa para pessoas negras no Brasil, visto que, alforriar pretos sem preocupação com sua recolocação social, intelectual e humana é contribuir para que negros e negras sigam em posições de vulnerabilidade, que é o que acontece até hoje. O Brasil segue sendo um país em que milhares de pessoas vivem em “situações análogas à escravidão” e não é coincidência que a maioria delas sejam pretas. A fictícia “abolição da escravatura” não significou melhora na vida dos “ex-escravizados”, pois nunca houveram políticas públicas massivas de reparação social para pessoas pretas. Muito pelo contrário, vivemos em uma sociedade profundamente desigual e isso segue sendo confortável para a elite branca brasileira.


A revolução é preta


Pessoas negras não nasceram escravas, elas foram escravizadas! Um dos passos importantes a serem dados pela sociedade brasileira é entender que a associação direta entre pessoas pretas com lugares de subalternidade é parte fundadora do racismo. As relações étnico-raciais traduzem vários “porquês” do Brasil. Como por exemplo: Por que o Brasil é o país que mais mata pessoas negras? Por que mulheres negras sofrem opressão duplamente? Por que o número de políticos negros no legislativo e no executivo é quase inexistente? Por que pessoas negras não são maioria nas universidades e nos cargos de gestão, se quantitativamente são a maioria da população? A escravidão e o seu “fim” sem políticas de reparação financeira e social segue aprofundando desigualdades que afetam profundamente a vida de negras e negros brasileiros.


Ao longo dos anos, também podemos pontuar alguns avanços conquistados em caráter coletivo, como por exemplo, a política de cotas nas universidades públicas brasileiras. O número de pessoas negras que terminam uma graduação no Brasil, ainda é mínimo. Vide as visualidades de fotos de formatura que encontramos nos corredores das universidades. Quantas pessoas negras estudaram com você ao longo da vida? Quantas se formaram e adentraram no mercado de trabalho em cargos de comando? Quantas seguiram na ciência e tiveram seus trabalhos citados amplamente? Em um país que até hoje ainda não conseguiu e nem se empenha para reparar os horrores da escravidão e onde o voto feminino só existiu a partir de 1932, ser mulher, negra e cientista é a grande revolução.



“Deus é mulher”


“Deus é mulher” é a frase que dá nome ao 33º álbum da carreira de Elza Soares. Elza é uma das maiores cantoras da música popular brasileira. E é uma mulher que ao longo dos anos tem celebrado a sua potência e negritude por meio da sua arte. Mulheres negras caminham na vanguarda do movimento negro no Brasil e no mundo. E para saudar toda a ancestralidade e potência dessas mulheres, vamos apresentar algumas “deusas” que travam suas batalhas na construção de uma ciência antirracista e feminista. Com licença poética ao clássico “mulher do fim do mundo” (Elza Soares, 2015), essas são algumas “mulheres para o fim de um mundo racista”:


Enedina Alves Marques


Primeira mulher negra engenheira do Brasil. Enedina nasceu em 1913, no Paraná, e se tornou a primeira mulher negra a graduar-se em um curso de engenharia. Ela enfrentou diversas retaliações por parte de outros estudantes, em sua maioria homens brancos que dominavam o curso. Engenheira Civil pela Universidade Federal do Paraná, trabalhou na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas. Trabalhou também no desenvolvimento do Plano Hidrelétrico do Paraná e durante toda a carreira acompanhou obras de perto, sendo reconhecida pelo protagonismo e liderança mesmo em um ambiente tão masculino e branco. Enedina Alves Marques é uma mulher negra que marcou historicamente a engenharia brasileira.



Enedina Alves Marques | Foto: Hypeness


Lélia Gonzalez


Nascida em 1935, Lélia Gonzalez é uma historiadora e filósofa brasileira que pensou em vanguarda no conceito de “interseccionalidade”. Com mestrado em Comunicação Social e doutorado em Antropologia, Lélia problematizou como raça, classe e gênero operam de forma conjunta na realidade social brasileira e que dessa forma não podem ser pensados como variáveis isoladas. Lélia Gonzalez começou sua carreira como professora em escolas de ensino fundamental e médio do Rio de Janeiro e depois foi professora universitária na Pontifícia Universidade Católica do RJ (PUC-RIO). Tem sua trajetória marcada por aliar sempre a militância em movimentos sociais à sua carreira como pesquisadora. Autora de livros clássicos, Lélia Gonzalez assina obras como: “Por um feminismo afrolatinoamericano”, “Lugar do Negro” e “Racismo e Sexismo na sociedade brasileira”.



Lélia Gonzalez | Foto: Cezar Louceiro

Sueli Carneiro


Fundadora do Gelédes - Instituto da Mulher Negra, primeira organização negra e feminista de São Paulo, Sueli Carneiro é doutora em Educação pela USP. Pesquisadora e teórica amplamente referenciada sobre a questão da mulher negra no Brasil, Sueli trabalha incansavelmente aliando discurso e prática no atendimento de mulheres negras em situação de vulnerabilidade social. Autora do livro “Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil”, a filósofa faz uma crítica histórica aos indicadores de desigualdade social em nosso país e aponta quais os principais avanços que podem nos indicar a superação do racismo.


Sueli Carneiro | Foto: Marcus Steinmayer

Jaqueline Goes de Jesus


Graduada em Biomedicina, mestre em Biotecnologia e doutora em Patologia Humana e Experimental pela UFBA/Fiocruz, Jaqueline Goes integrou a equipe que realizou o primeiro sequenciamento do genoma do coronavírus na América Latina, apenas 48h após a confirmação do primeiro caso. A cientista baiana é uma das coordenadoras do projeto que vem acompanhando os impactos da Covid-19 no Brasil. Hoje, pós-doutoranda na USP, Jaqueline Goes de Jesus é uma voz potente como mulher negra e nordestina nas pesquisas na área da Saúde em todo o Brasil.



Jaqueline Goes | Foto: EdgarDigital

Saudando a trajetória dessas mulheres negras na ciência, reverenciamos todas as ancestrais que permitiram que isso fosse possível! Só a educação aliada à políticas públicas de reparação podem enfrentar e derrubar as paredes impostas pelo racismo estrutural.

Uma ciência antirracista liberta!



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